quarta-feira, 10 de novembro de 2010
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Autorretratos de Holland Day
Logo que a fotografia se concretizou no Séc.XIX, artistas se colocaram diante de câmeras fotográficas para se autorrepresentarem. Desde então, várias gerações usam a fotografia como espelhos mágicos que abreviam o tempo de autorretratos, antes realizados apenas por outras linguagens, principalmente a pictórica. O que muda para o espectador saber que uma imagem foi construída a partir da autoexposição do corpo do próprio artista? Nada e talvez mude tudo, dependendo se a informação é clara ou subscrita. Toda espécie de confusão entre realidade e ficção, entre o mundo prático visível do artista e o mundo falseado ou lúdico da vida imaginativa se estabelece quando sabemos tratar-se da imagem do próprio artista.
Vejamos o caso do trabalho do fotógrafo americano, editor e curador independente Fred Holland Day. Sua obra ficou esquecida por anos, quase à margem da história da arte e da história da fotografia por uma série de fatores, principalmente dado o conteúdo homoerótico de seus retratos. Em parte também, porque os temas inspirados na Antiguidade Clássica que marcaram o trabalho Pictorialista de Day e o estilo simbolista de suas fotografias teriam saído de ‘moda’ em face da mudança radical das novas correntes modernistas da arte no final do Séc.XIX e início do Séc.XX. A série de autorretratos de Holland Day entre os anos de 1896 até 1898 alusivos aos últimos dias de vida de Jesus Cristo causou alvoroço na época de sua divulgação.
O trabalho incluía desde tomadas externas em que Day re-encena o momento de crucificação tal qual descrito na Bíblia, como também um ensaio composto de sete imagens do seu rosto montadas em seqüência como obra única, cada uma legendada com as sete frases finais de Cristo durante a crucificação. Não se sabe ao certo se a receptividade ruim à série de Day estava ligada a forma ou ao conteúdo do tema, mas tido como figura promíscua, a associação da imagem do seu rosto com a imagem sacra de Cristo foi mal recebida. O que parecem imagens inocentes com apelo cristão soou inadequado para os ideais do formalismo do movimento moderno americano que fechava todas as portas para trabalhos figurativos com conotações pessoais, religiosas e principalmente de cunho homossexual. Autorretratos, principalmente fotográficos, ficavam alijados a uma categoria menor ou não eram sequer reconhecidos*.
Acima,‘The Seven last words of Christ’, Fotos de Fred Holland Day, de 1898.
Analisar trabalhos como os de Holland Day somente pelo tema ou pelos modelos de temporalidade das imagens seria reducionista. Conforme afirma Michael Baxandall, não é somente a análise do ambiente sociocultural que pode aguçar nossa experiência com uma imagem artística, mas as próprias formas e os estilos visuais é que podem apurar a percepção que temos da sociedade. Reduzir as abordagens de objetos artísticos apenas aos enfoques formalistas, negando sua condição histórica é veementemente negado pelo autor, que julga esta conduta do historiador com um simples inventariado classificatório. Ele sugere que os estudos de casos são mais importante como metodologia à história da arte, do que as teorizações globais que não valorizam a condição dos artistas enquanto seres sociais, ou mesmo as obras como objetos condicionados aos códigos da cultura em que está inserida ou em que está sendo exposta. (BAXANDALL, 1987, p. 11).
Será que se analisarmos os autorretratos de Holland Day apenas pelo viés histórico e sociocultural, tanto do artista quanto das suas imagens, não se incorreria no risco de interpretar o passado de forma idealizada sob a luz de conceitos construídos por fontes que já relegaram o artista e sua obra ao ostracismo? Que fontes consultar, as ligadas à história da arte ou as socioculturais? Os autorretratos de Day são importantes não só porque são raros exemplares do Século XIX, como também pelo fato de serem obras que subverteram o caráter reprodutível e serial da fotografia ao serem montadas juntas, como objeto, numa espécie de estetização aurática que lhe confere o status de obra única, atribuído no processo posterior à sua produção, e sim na montagem posterior. Holland Day não gostava de cópias, e fazia geralmente impressões limitadas de seus trabalhos. A série da crucificação foi representada fotograficamente de forma seqüencial, mas Day apresentou-as como obra única. Interessa-me investigar o trabalho de artistas cujas poéticas transcendam os limites figurativos previsíveis da fotografia enquanto ferramenta de construção ficcional.
Flavya Mutran
REFERENCIAS
BAXANDALL, Michael. Olhar renascente. Pintura e experiência social na Itália da Renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
* Só recentemente a obra de Fred Holland Day (1864-1933) passou a ser incluída entre os estudos de críticos ligados à Arte e à História da Fotografia. Boa parte de sua obra foi destruída em um incêndio em 1904 e seu trabalho foi em parte eclipsado pela figura de seu contemporâneo e rival Alfred Stieglitz, e alguns atribuem a essa briga o fato de Day ter declinado do convite para participar do movimento Fotosessecionista nos EUA. A eroticidade de sua obra têm sido alvo de textos acadêmicos, sendo incluídas em grandes exposições em museus como a mostra retrospectiva no Boston Museum of Fine Arts, em 2000/2001 e mostras semelhantes no Real Photographic Society, na Inglaterra e do Museu de Arte de Fuller no mesmo período.
Vejamos o caso do trabalho do fotógrafo americano, editor e curador independente Fred Holland Day. Sua obra ficou esquecida por anos, quase à margem da história da arte e da história da fotografia por uma série de fatores, principalmente dado o conteúdo homoerótico de seus retratos. Em parte também, porque os temas inspirados na Antiguidade Clássica que marcaram o trabalho Pictorialista de Day e o estilo simbolista de suas fotografias teriam saído de ‘moda’ em face da mudança radical das novas correntes modernistas da arte no final do Séc.XIX e início do Séc.XX. A série de autorretratos de Holland Day entre os anos de 1896 até 1898 alusivos aos últimos dias de vida de Jesus Cristo causou alvoroço na época de sua divulgação.
O trabalho incluía desde tomadas externas em que Day re-encena o momento de crucificação tal qual descrito na Bíblia, como também um ensaio composto de sete imagens do seu rosto montadas em seqüência como obra única, cada uma legendada com as sete frases finais de Cristo durante a crucificação. Não se sabe ao certo se a receptividade ruim à série de Day estava ligada a forma ou ao conteúdo do tema, mas tido como figura promíscua, a associação da imagem do seu rosto com a imagem sacra de Cristo foi mal recebida. O que parecem imagens inocentes com apelo cristão soou inadequado para os ideais do formalismo do movimento moderno americano que fechava todas as portas para trabalhos figurativos com conotações pessoais, religiosas e principalmente de cunho homossexual. Autorretratos, principalmente fotográficos, ficavam alijados a uma categoria menor ou não eram sequer reconhecidos*.
Acima,‘The Seven last words of Christ’, Fotos de Fred Holland Day, de 1898.
Analisar trabalhos como os de Holland Day somente pelo tema ou pelos modelos de temporalidade das imagens seria reducionista. Conforme afirma Michael Baxandall, não é somente a análise do ambiente sociocultural que pode aguçar nossa experiência com uma imagem artística, mas as próprias formas e os estilos visuais é que podem apurar a percepção que temos da sociedade. Reduzir as abordagens de objetos artísticos apenas aos enfoques formalistas, negando sua condição histórica é veementemente negado pelo autor, que julga esta conduta do historiador com um simples inventariado classificatório. Ele sugere que os estudos de casos são mais importante como metodologia à história da arte, do que as teorizações globais que não valorizam a condição dos artistas enquanto seres sociais, ou mesmo as obras como objetos condicionados aos códigos da cultura em que está inserida ou em que está sendo exposta. (BAXANDALL, 1987, p. 11).
Será que se analisarmos os autorretratos de Holland Day apenas pelo viés histórico e sociocultural, tanto do artista quanto das suas imagens, não se incorreria no risco de interpretar o passado de forma idealizada sob a luz de conceitos construídos por fontes que já relegaram o artista e sua obra ao ostracismo? Que fontes consultar, as ligadas à história da arte ou as socioculturais? Os autorretratos de Day são importantes não só porque são raros exemplares do Século XIX, como também pelo fato de serem obras que subverteram o caráter reprodutível e serial da fotografia ao serem montadas juntas, como objeto, numa espécie de estetização aurática que lhe confere o status de obra única, atribuído no processo posterior à sua produção, e sim na montagem posterior. Holland Day não gostava de cópias, e fazia geralmente impressões limitadas de seus trabalhos. A série da crucificação foi representada fotograficamente de forma seqüencial, mas Day apresentou-as como obra única. Interessa-me investigar o trabalho de artistas cujas poéticas transcendam os limites figurativos previsíveis da fotografia enquanto ferramenta de construção ficcional.
Flavya Mutran
REFERENCIAS
BAXANDALL, Michael. Olhar renascente. Pintura e experiência social na Itália da Renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
* Só recentemente a obra de Fred Holland Day (1864-1933) passou a ser incluída entre os estudos de críticos ligados à Arte e à História da Fotografia. Boa parte de sua obra foi destruída em um incêndio em 1904 e seu trabalho foi em parte eclipsado pela figura de seu contemporâneo e rival Alfred Stieglitz, e alguns atribuem a essa briga o fato de Day ter declinado do convite para participar do movimento Fotosessecionista nos EUA. A eroticidade de sua obra têm sido alvo de textos acadêmicos, sendo incluídas em grandes exposições em museus como a mostra retrospectiva no Boston Museum of Fine Arts, em 2000/2001 e mostras semelhantes no Real Photographic Society, na Inglaterra e do Museu de Arte de Fuller no mesmo período.
Lugar de novos espelhos.
Qual seria o lugar do rosto – do eu – ao final da primeira década do Século XXI? Segundo a revista norte-americana TIME, que tradicionalmente elege as mais importantes figuras que mais afetam nossas vidas a cada ano, a principal personalidade de 2006 foi o homem comum, o rosto anônimo daquele que se confirma como o grande responsável pelas transformações na era da informação... você!
Acima, a capa da revista TIME de 2006 exibia um material metalizado no centro, fazendo com que o leitor visualizasse o próprio rosto refletido no papel metalizado dos limites do monitor de um computador
A capa espelhada da revista Time de 2006 nos remete ao trânsito de olhares e pontos de vista já citados, segundo Foucault e Bourdieu, mas parece mesmo é confirmar as idéias de Walter Benjamin sobre o comportamento do homem pós-imagens técnicas. A reivindicação pelo direito de ser filmado, como uma das conquistas da modernidade precocemente prevista pelo autor em 1936, tornou-se um fato. Vivemos cercados de câmeras e lentes, e nossa imagem se reproduz às centenas e milhares, sem que a maioria delas seja sequer impressa ou mesmo saia dos dispositivos eletrônicos que a produzem. Benjamin afirmava que o rádio e o cinema seriam responsáveis por uma modificação no comportamento do intérprete (ator e atriz) profissional, e também mudariam a maneira pela qual o homem comum representaria a si próprio diante desses dois veículos de comunicação. Na era digital isso se confirma e se amplia a cada dia.
O olhar do transeunte ao qual Foucault se referiu como sendo o reflexo invisível na tela de Velázquez se multiplicou aos milhões. Tornou-se a massa que Benjamin visionou, controlando e sendo controlada pelo imperativo da superexposição. Essas novas modalidades de autoexibição que hoje se proliferam, com uma crescente exteriorização do eu, para Paula Sibilia sugerem que o eixo em torno do qual as subjetividades modernas costumavam se edificar estaria se deslocando, ‘pois a intimidade se evadiu do espaço privado e passou a invadir aquela esfera que outrora se considerava pública’ (SIBILIA, 2008, p.77). Mas tal deslocamento estaria se dirigindo para onde? Mais do que saber para onde, talvez devêssemos pensar antes os porquês e quais as motivações de tal mobilidade.
Flavya Mutran
Trecho da dissertação de mestrado em Artes Visuais no IA/UFRGS.
___________
REFERENCIAS
BENJAMIN, Walter. ‘A Obra de Arte na era da de sua reprodutibilidade técnica’. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v.01) (pp.165-196)
FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (PP.19-31).
______, A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
SIBILIA, Paula O show do eu: A intimidade como espetáculo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.
'Ou melhor: não apenas você, mas também eu e todos nós. Ou mais precisamente ainda, cada um de nós: as pessoas comuns. Um espelho brilhava na capa da publicação e convidava seus leitores a nele se contemplarem como Narcisos satisfeitos de verem suas personalidades cintilando no mais alto pódio da mídia.‘ (SIBÍLIA, 2008. p.08)
Acima, a capa da revista TIME de 2006 exibia um material metalizado no centro, fazendo com que o leitor visualizasse o próprio rosto refletido no papel metalizado dos limites do monitor de um computador
A capa espelhada da revista Time de 2006 nos remete ao trânsito de olhares e pontos de vista já citados, segundo Foucault e Bourdieu, mas parece mesmo é confirmar as idéias de Walter Benjamin sobre o comportamento do homem pós-imagens técnicas. A reivindicação pelo direito de ser filmado, como uma das conquistas da modernidade precocemente prevista pelo autor em 1936, tornou-se um fato. Vivemos cercados de câmeras e lentes, e nossa imagem se reproduz às centenas e milhares, sem que a maioria delas seja sequer impressa ou mesmo saia dos dispositivos eletrônicos que a produzem. Benjamin afirmava que o rádio e o cinema seriam responsáveis por uma modificação no comportamento do intérprete (ator e atriz) profissional, e também mudariam a maneira pela qual o homem comum representaria a si próprio diante desses dois veículos de comunicação. Na era digital isso se confirma e se amplia a cada dia.
Com a representação do homem pelo aparelho, a auto-alienação humana encontrou uma aplicação altamente criadora. Essa aplicação pode ser avaliada pelo fato que a estranheza do intérprete diante do aparelho (...) é da mesma espécie que a estranheza do homem, no período romântico, diante de sua imagem no espelho (...). Hoje, essa imagem especular se torna descartável e transportável. Transportável para onde? Para um lugar onde ela possa ser vista pela massa. Naturalmente o intérprete tem plena consciência desse fato, em todos os momentos. Ele sabe, quando está diante da câmara, que sua relação é em última instância com a massa. É ela que vai controlá-lo. (BENJAMIN, 1994, p.180)
O olhar do transeunte ao qual Foucault se referiu como sendo o reflexo invisível na tela de Velázquez se multiplicou aos milhões. Tornou-se a massa que Benjamin visionou, controlando e sendo controlada pelo imperativo da superexposição. Essas novas modalidades de autoexibição que hoje se proliferam, com uma crescente exteriorização do eu, para Paula Sibilia sugerem que o eixo em torno do qual as subjetividades modernas costumavam se edificar estaria se deslocando, ‘pois a intimidade se evadiu do espaço privado e passou a invadir aquela esfera que outrora se considerava pública’ (SIBILIA, 2008, p.77). Mas tal deslocamento estaria se dirigindo para onde? Mais do que saber para onde, talvez devêssemos pensar antes os porquês e quais as motivações de tal mobilidade.
Flavya Mutran
Trecho da dissertação de mestrado em Artes Visuais no IA/UFRGS.
___________
REFERENCIAS
BENJAMIN, Walter. ‘A Obra de Arte na era da de sua reprodutibilidade técnica’. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v.01) (pp.165-196)
FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (PP.19-31).
______, A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
SIBILIA, Paula O show do eu: A intimidade como espetáculo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
Banco de idéias sobre arte em Português
A Anpap é a Associação Nacional de Pesquisadores em Arte que há mais de 10 anos se dedica aos interesses da pesquisa feita no Brasil e fora dele, seja no campo da História, Teoria e Crítica, seja nas abordagens da Poética, Patrimônio e Educação. Este ano, o 19° Encontro da Associação aconteceu no Campus da Universidade Federal do Recôncavo Bahiano, em Cachoeira/BA. Os temas giraram em torno das questões que envolvem TERRITÓRIOS e os mais diferentes caminhos da pesquisa EM e SOBRE arte no Brasil. Para acessar os anais dos encontros - inclusive os anteriores - visite o link abaixo:
http://www.anpap.org.br/
Enjoy!
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Crise do Real
Acima, capa do livro 'Crisis of Real'.
Na década de 1970, artistas de várias linguagens saíram em centenas de direções de uma só vez, e a partir daí a arte passou a ser constituída por uma mistura de mídias como parte da sua diversidade. A fotografia rapidamente foi incorporada nesse panorama e com ela, suas manifestações preexistentes em propagandas, cartazes, imagens de revistas e, também, coleções de fotos de álbuns familiares. O uso de imagens técnicas, com base na câmera, passa a ser um elemento essencial de vínculo com a cultura contemporânea que veio a ser chamada de pós-moderna. Para Andy Grundberg (1990), crítico americano interessado na relação entre fotografia, o mundo da arte e os meios de comunicação na pós-modernidade*, a acentuada teatralidade, artificialidade e densidade conceitual das imagens produzidas a partir dos anos de 1980 são sintomas de uma profunda diferença entre os modos de pensar e produzir fotografias na pós-modernidade. Fotografias para os artistas pós-modernos não são mais vistas como janelas transparentes sobre o mundo como para seus antecessores modernistas, e sim intricadas teias fiadas pela cultura, afirma o autor.
Assim, o trabalho de artistas como Cindy Sherman (acima) com suas várias séries de autorretratos, coloca em xeque a idéia de identidade pessoal, gênero masculino e feminino, ou as personagens mitológicas, as atávicas, ou para cada uma das máscaras de todos nós.
Os ‘Family Docudramas’ de Eileen Cowin, (acima) em que a artista fotografa a si e a própria família - incluindo sua irmã gêmea -, encenando momentos do cotidiano, também marcam o período. A teatralidade das sequencias faz alusão ás fotonovelas e sugerem também que a nossa idéia de realidade é feita de imagens. Tornam explícito o domínio da fotografia como mediação entre o mundo exterior, repleto de signos midiáticos e, o interior, feito de imagens contaminadas desse excesso visual que circula pelos nossos ambientes íntimos.
Flavya Mutran
_____
* Para Grundberg, o termo pós-modernismo no mundo da arte passa a significar algo mais do que simplesmente o que viria após o modernismo, sendo uma espécie de sub-cotação dos pressupostos básicos sobre o papel da arte na cultura e sobre o papel do artista em relação à sua arte, podendo ter conotações diferentes dependendo da linguagem em questão, como a dança, a arquitetura, a literatura e, também, a fotografia. GRUNDBERG, Andy. Crisis Of The Real: Writings on Photography, 1974-1989. NEW YORK: APERTURE, 1990.
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Foucault (nos) olha através do espelho de Velázquez
Ainda sobre o intrigante ‘Las Meninas’, de Diego Velázquez. Embora não existam pistas óbvias de tratar-se de um autorretrato - seja no título, seja na profusão de personagens da cena -, a imagem é antes de tudo um convite para uma (auto)análise. Velázquez constrói uma imagem que nos faz pensar sermos testemunhas de uma habitual cena de convivência do artista com a nobreza.
Subvertendo os pontos de vistas do observador e do observado, Velázquez expõe as diferenças do papel social do artista frente às classes dominantes de seu tempo, e reivindica seu próprio lugar e sua condição social colocando-se na cena. E mais, macula a relação de intimidade junto aos nobres nos convidando a testemunhar o evento. Ao se colocar no papel de protagonista junto aos reis, representados apenas no reflexo longínquo da parede do fundo da sala, Velázquez brinca de girar a roda da fortuna confundindo a hierarquia histórica das personagens, quase como num manifesto silencioso enviado para as gerações futuras. Parece apontar as fragilidades dos bens materiais frente ao talento divino do artista, e desafia o seu tempo a ultrapassar essas fronteiras. Duplicando seu olhar, ora para dentro e ora para fora da tela, o pintor se divide nos papéis da interlocução. Assim, também nos coloca no diálogo como interatores capazes de questionar não só o papel de cada personagem, como nosso próprio papel enquanto espectadores, num exercício especular.
A palavra especular pode ser, além de alusivo a espelho, definida como o ato de observar, meditar, pesquisar e indagar, e é nessa ordem que também racionalizamos teoricamente as causas da existência metafísica das coisas. Não à toa, Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas’ (1981) fez um passeio filosófico sobre as relações que se constroem em torno da imagem de ‘Las Meninas’, analisando o lugar do sujeito na representação. Sua leitura crítica sobre a obra destaca fundamentalmente a importância do espelho no fundo da sala e no centro áureo da pintura, como o elemento que restitui o que falta a cada olhar das personagens em cena:
'Talvez essa generosidade do espelho seja simulada; talvez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderia aparecer – deveriam aparecer – o rosto anônimo do transeunte e o de Velázquez. Pois a função desse reflexo é atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra.’ (FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (p. 30)
O estudo de Foucault vai ao cerne do problema que gira em torno do sujeito que se autorretrata figurativamente. Sua relação ambígua com sua própria imagem frente ao seu papel social, sua identidade privada e sua conduta coletiva, seus motivos de adoração e desejos de transformação e perpetuação. Em outras palavras, o desejo de lançar mão da própria imagem e projetá-la para além de sua limitada existência física original acompanha a humanidade até hoje, e não são poucos os exemplos. A autorreflexão, autoafirmação, autodilaceração ou autossublimação caminham lado a lado ao espírito criativo. São buscas pela eternidade. Estão dentro dos artistas e de cada um de nós em maior e em menor grau ao longo da nossa existência.
Subvertendo os pontos de vistas do observador e do observado, Velázquez expõe as diferenças do papel social do artista frente às classes dominantes de seu tempo, e reivindica seu próprio lugar e sua condição social colocando-se na cena. E mais, macula a relação de intimidade junto aos nobres nos convidando a testemunhar o evento. Ao se colocar no papel de protagonista junto aos reis, representados apenas no reflexo longínquo da parede do fundo da sala, Velázquez brinca de girar a roda da fortuna confundindo a hierarquia histórica das personagens, quase como num manifesto silencioso enviado para as gerações futuras. Parece apontar as fragilidades dos bens materiais frente ao talento divino do artista, e desafia o seu tempo a ultrapassar essas fronteiras. Duplicando seu olhar, ora para dentro e ora para fora da tela, o pintor se divide nos papéis da interlocução. Assim, também nos coloca no diálogo como interatores capazes de questionar não só o papel de cada personagem, como nosso próprio papel enquanto espectadores, num exercício especular.
A palavra especular pode ser, além de alusivo a espelho, definida como o ato de observar, meditar, pesquisar e indagar, e é nessa ordem que também racionalizamos teoricamente as causas da existência metafísica das coisas. Não à toa, Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas’ (1981) fez um passeio filosófico sobre as relações que se constroem em torno da imagem de ‘Las Meninas’, analisando o lugar do sujeito na representação. Sua leitura crítica sobre a obra destaca fundamentalmente a importância do espelho no fundo da sala e no centro áureo da pintura, como o elemento que restitui o que falta a cada olhar das personagens em cena:
'Talvez essa generosidade do espelho seja simulada; talvez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderia aparecer – deveriam aparecer – o rosto anônimo do transeunte e o de Velázquez. Pois a função desse reflexo é atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra.’ (FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (p. 30)
O estudo de Foucault vai ao cerne do problema que gira em torno do sujeito que se autorretrata figurativamente. Sua relação ambígua com sua própria imagem frente ao seu papel social, sua identidade privada e sua conduta coletiva, seus motivos de adoração e desejos de transformação e perpetuação. Em outras palavras, o desejo de lançar mão da própria imagem e projetá-la para além de sua limitada existência física original acompanha a humanidade até hoje, e não são poucos os exemplos. A autorreflexão, autoafirmação, autodilaceração ou autossublimação caminham lado a lado ao espírito criativo. São buscas pela eternidade. Estão dentro dos artistas e de cada um de nós em maior e em menor grau ao longo da nossa existência.
domingo, 26 de abril de 2009
Las Meninas
'Las Meninas', de Diego Velazques, 1656.
Ver, ou melhor, rever ‘Las Meninas’ quase 20 anos depois da primeira vez foi uma experiência curiosa. Ainda no curso de Arquitetura e Urbanismo na UFPA, esta imagem do espanhol Diego Velazquez me foi apresentada pelo então titular da Disciplina História da Arte, Prof° Hélio Veríssimo (um gaúcho que foi um dos pioneiros da disciplina História da Arte no Pará) no fim da década de 1980. Pouco me lembro dos comentários do professor, exceto por alguns detalhes relativos às curiosidades sobre os retratados, sobre umas supostas mensagens simbólicas camufladas na riqueza de detalhes do aposento barroco, e de, talvez, ter desejado um dia poder ver de perto esta e outras imagens daquela aula. Hoje, meu olhar se vê mais uma vez convidado a entrar neste quadro enigmático, - novamente ciceroneado por outra gaúcha, Profª Mônica Zielinsky, - e relatar minhas impressões desse passeio visual reflexivo. Não poderia começar minha abordagem sem antes levantar o componente sentimental e memorialista que esta imagem provoca em mim, ontem e agora, pois é justamente daí que vem minha leitura mais espontânea: a relação do olhar ao longo do tempo.
Não sei se foi a vivência como fotógrafa que me impôs um leitura visual pautada prioritariamente nas questões da luz e do foco, mas ‘Las meninas’ tem nestes dois quesitos elementos estruturais que lhe garantem parte da força e do frescor que lhe constituem. Quase duzentos anos antes da invenção da fotografia, Velazquez constrói uma cena rica em contrastes de claro e escuro, e com uma profundidade de foco no campo visual que seria compatível com uma ínfima abertura de diafragma, o que lhe garantiria muita nitidez para a cena se estivesse usando uma câmera. A iluminação da cena a partir da disposição dos personagens e da tela, - que parece está em processo de produção com um pintor ainda a postos - invoca a primeira de uma série de estranhezas relativas ao assunto do quadro e a intenção do autor ao criá-lo. O que de fato estaria acontecendo na sala?
Sem entrar no mérito dos personagens e do papel que cada um representa no grupo -muitos outros já fizeram isso de forma brilhante, e proponho ler a obra com o mínimo possível de referências diretas -, atenho-me a ver o quadro com o que trago das reminiscências que já descrevi há pouco. É indiscutível reconhecer que se trata de uma imagem que remete imediatamente a um flagrante típico de um registro paparazzi. Furtivamente, Velazquez nos faz pensar sermos testemunhas de uma cena habitual do seu atelier durante sua convivência com a nobreza espanhola. Os olhares desconfiados e surpresos do pintor, da menina loura, da anã e do nobre ao fundo da sala nos denuncia como visitantes deslocados do contexto. Suas expressões nos questionam sobre o quanto de mágico e perverso existe na curiosidade humana pela invasão aos círculos privados, nas vidas alheias e nas altas esferas de convívio do poder. Não é preciso muito conhecimento histórico para logo intuir que se trata de um grupo real, reunido e rodeado pelos símbolos que lhe vem perpetuando o status de luxo e riqueza: quadros, jóias, serviçais e um pintor para eternizar ou fantasiar o que eles achavam ser sua condição divina.
Ao flagrar a cena e se perguntar quem poderia afinal estaria sendo pintado pelo pintor à esquerda (imaginando não saber que se trata do próprio Velazquez auto-retratado junto aos nobres) tenta-se recorrer ao título do quadro, em que as meninas são o tema principal. A iluminação da cena, no entanto, confunde o assunto, pois a personagem mais ricamente adornada encontra-se de costas para o pintor, iluminada à contraluz e aparentemente interessada em olhar para além dos limites do quadro. Será para nós? Examinando atentamente o ambiente, vê-se ao fundo da sala um grande espelho que reflete um casal de nobres vestidos e postados com um rigor de realeza, e eles sim, parecem inspirar a atenção e respeito dos demais. Daí é que a uma nova organização espacial pode se dar para a cena, uma vez que a luz lateral ilumina um tema novo para nosso olhar, mas não para as demandas dos pintores dos séculos passados, que eram basicamente mantidos pelas encomendas de retratos à óleo de reis e do clero, como forma de perpetuação de poder e deleite narcisista.
Acima, a identificação dos personagens retratados no quadro.
Assinar:
Postagens (Atom)