quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Autorretratos de Holland Day

Logo que a fotografia se concretizou no Séc.XIX, artistas se colocaram diante de câmeras fotográficas para se autorrepresentarem. Desde então, várias gerações usam a fotografia como espelhos mágicos que abreviam o tempo de autorretratos, antes realizados apenas por outras linguagens, principalmente a pictórica. O que muda para o espectador saber que uma imagem foi construída a partir da autoexposição do corpo do próprio artista? Nada e talvez mude tudo, dependendo se a informação é clara ou subscrita. Toda espécie de confusão entre realidade e ficção, entre o mundo prático visível do artista e o mundo falseado ou lúdico da vida imaginativa se estabelece quando sabemos tratar-se da imagem do próprio artista.

Vejamos o caso do trabalho do fotógrafo americano, editor e curador independente Fred Holland Day. Sua obra ficou esquecida por anos, quase à margem da história da arte e da história da fotografia por uma série de fatores, principalmente dado o conteúdo homoerótico de seus retratos. Em parte também, porque os temas inspirados na Antiguidade Clássica que marcaram o trabalho Pictorialista de Day e o estilo simbolista de suas fotografias teriam saído de ‘moda’ em face da mudança radical das novas correntes modernistas da arte no final do Séc.XIX e início do Séc.XX. A série de autorretratos de Holland Day entre os anos de 1896 até 1898 alusivos aos últimos dias de vida de Jesus Cristo causou alvoroço na época de sua divulgação.

O trabalho incluía desde tomadas externas em que Day re-encena o momento de crucificação tal qual descrito na Bíblia, como também um ensaio composto de sete imagens do seu rosto montadas em seqüência como obra única, cada uma legendada com as sete frases finais de Cristo durante a crucificação. Não se sabe ao certo se a receptividade ruim à série de Day estava ligada a forma ou ao conteúdo do tema, mas tido como figura promíscua, a associação da imagem do seu rosto com a imagem sacra de Cristo foi mal recebida. O que parecem imagens inocentes com apelo cristão soou inadequado para os ideais do formalismo do movimento moderno americano que fechava todas as portas para trabalhos figurativos com conotações pessoais, religiosas e principalmente de cunho homossexual. Autorretratos, principalmente fotográficos, ficavam alijados a uma categoria menor ou não eram sequer reconhecidos*.



Acima,‘The Seven last words of Christ’, Fotos de Fred Holland Day, de 1898.

Analisar trabalhos como os de Holland Day somente pelo tema ou pelos modelos de temporalidade das imagens seria reducionista. Conforme afirma Michael Baxandall, não é somente a análise do ambiente sociocultural que pode aguçar nossa experiência com uma imagem artística, mas as próprias formas e os estilos visuais é que podem apurar a percepção que temos da sociedade. Reduzir as abordagens de objetos artísticos apenas aos enfoques formalistas, negando sua condição histórica é veementemente negado pelo autor, que julga esta conduta do historiador com um simples inventariado classificatório. Ele sugere que os estudos de casos são mais importante como metodologia à história da arte, do que as teorizações globais que não valorizam a condição dos artistas enquanto seres sociais, ou mesmo as obras como objetos condicionados aos códigos da cultura em que está inserida ou em que está sendo exposta. (BAXANDALL, 1987, p. 11).

Será que se analisarmos os autorretratos de Holland Day apenas pelo viés histórico e sociocultural, tanto do artista quanto das suas imagens, não se incorreria no risco de interpretar o passado de forma idealizada sob a luz de conceitos construídos por fontes que já relegaram o artista e sua obra ao ostracismo? Que fontes consultar, as ligadas à história da arte ou as socioculturais? Os autorretratos de Day são importantes não só porque são raros exemplares do Século XIX, como também pelo fato de serem obras que subverteram o caráter reprodutível e serial da fotografia ao serem montadas juntas, como objeto, numa espécie de estetização aurática que lhe confere o status de obra única, atribuído no processo posterior à sua produção, e sim na montagem posterior. Holland Day não gostava de cópias, e fazia geralmente impressões limitadas de seus trabalhos. A série da crucificação foi representada fotograficamente de forma seqüencial, mas Day apresentou-as como obra única. Interessa-me investigar o trabalho de artistas cujas poéticas transcendam os limites figurativos previsíveis da fotografia enquanto ferramenta de construção ficcional.

Flavya Mutran

REFERENCIAS
BAXANDALL, Michael. Olhar renascente. Pintura e experiência social na Itália da Renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

* Só recentemente a obra de Fred Holland Day (1864-1933) passou a ser incluída entre os estudos de críticos ligados à Arte e à História da Fotografia. Boa parte de sua obra foi destruída em um incêndio em 1904 e seu trabalho foi em parte eclipsado pela figura de seu contemporâneo e rival Alfred Stieglitz, e alguns atribuem a essa briga o fato de Day ter declinado do convite para participar do movimento Fotosessecionista nos EUA. A eroticidade de sua obra têm sido alvo de textos acadêmicos, sendo incluídas em grandes exposições em museus como a mostra retrospectiva no Boston Museum of Fine Arts, em 2000/2001 e mostras semelhantes no Real Photographic Society, na Inglaterra e do Museu de Arte de Fuller no mesmo período.

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