quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Lugar de novos espelhos.

Qual seria o lugar do rosto – do eu – ao final da primeira década do Século XXI? Segundo a revista norte-americana TIME, que tradicionalmente elege as mais importantes figuras que mais afetam nossas vidas a cada ano, a principal personalidade de 2006 foi o homem comum, o rosto anônimo daquele que se confirma como o grande responsável pelas transformações na era da informação... você!

'Ou melhor: não apenas você, mas também eu e todos nós. Ou mais precisamente ainda, cada um de nós: as pessoas comuns. Um espelho brilhava na capa da publicação e convidava seus leitores a nele se contemplarem como Narcisos satisfeitos de verem suas personalidades cintilando no mais alto pódio da mídia.‘ (SIBÍLIA, 2008. p.08)




Acima, a capa da revista TIME de 2006 exibia um material metalizado no centro, fazendo com que o leitor visualizasse o próprio rosto refletido no papel metalizado dos limites do monitor de um computador

A capa espelhada da revista Time de 2006 nos remete ao trânsito de olhares e pontos de vista já citados, segundo Foucault e Bourdieu, mas parece mesmo é confirmar as idéias de Walter Benjamin sobre o comportamento do homem pós-imagens técnicas. A reivindicação pelo direito de ser filmado, como uma das conquistas da modernidade precocemente prevista pelo autor em 1936, tornou-se um fato. Vivemos cercados de câmeras e lentes, e nossa imagem se reproduz às centenas e milhares, sem que a maioria delas seja sequer impressa ou mesmo saia dos dispositivos eletrônicos que a produzem. Benjamin afirmava que o rádio e o cinema seriam responsáveis por uma modificação no comportamento do intérprete (ator e atriz) profissional, e também mudariam a maneira pela qual o homem comum representaria a si próprio diante desses dois veículos de comunicação. Na era digital isso se confirma e se amplia a cada dia.

Com a representação do homem pelo aparelho, a auto-alienação humana encontrou uma aplicação altamente criadora. Essa aplicação pode ser avaliada pelo fato que a estranheza do intérprete diante do aparelho (...) é da mesma espécie que a estranheza do homem, no período romântico, diante de sua imagem no espelho (...). Hoje, essa imagem especular se torna descartável e transportável. Transportável para onde? Para um lugar onde ela possa ser vista pela massa. Naturalmente o intérprete tem plena consciência desse fato, em todos os momentos. Ele sabe, quando está diante da câmara, que sua relação é em última instância com a massa. É ela que vai controlá-lo. (BENJAMIN, 1994, p.180)


O olhar do transeunte ao qual Foucault se referiu como sendo o reflexo invisível na tela de Velázquez se multiplicou aos milhões. Tornou-se a massa que Benjamin visionou, controlando e sendo controlada pelo imperativo da superexposição. Essas novas modalidades de autoexibição que hoje se proliferam, com uma crescente exteriorização do eu, para Paula Sibilia sugerem que o eixo em torno do qual as subjetividades modernas costumavam se edificar estaria se deslocando, ‘pois a intimidade se evadiu do espaço privado e passou a invadir aquela esfera que outrora se considerava pública’ (SIBILIA, 2008, p.77). Mas tal deslocamento estaria se dirigindo para onde? Mais do que saber para onde, talvez devêssemos pensar antes os porquês e quais as motivações de tal mobilidade.

Flavya Mutran
Trecho da dissertação de mestrado em Artes Visuais no IA/UFRGS.

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REFERENCIAS
BENJAMIN, Walter. ‘A Obra de Arte na era da de sua reprodutibilidade técnica’. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 7ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v.01) (pp.165-196)
FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (PP.19-31).
______, A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
SIBILIA, Paula O show do eu: A intimidade como espetáculo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.

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