segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Foucault (nos) olha através do espelho de Velázquez

Ainda sobre o intrigante ‘Las Meninas’, de Diego Velázquez. Embora não existam pistas óbvias de tratar-se de um autorretrato - seja no título, seja na profusão de personagens da cena -, a imagem é antes de tudo um convite para uma (auto)análise. Velázquez constrói uma imagem que nos faz pensar sermos testemunhas de uma habitual cena de convivência do artista com a nobreza.

Subvertendo os pontos de vistas do observador e do observado, Velázquez expõe as diferenças do papel social do artista frente às classes dominantes de seu tempo, e reivindica seu próprio lugar e sua condição social colocando-se na cena. E mais, macula a relação de intimidade junto aos nobres nos convidando a testemunhar o evento. Ao se colocar no papel de protagonista junto aos reis, representados apenas no reflexo longínquo da parede do fundo da sala, Velázquez brinca de girar a roda da fortuna confundindo a hierarquia histórica das personagens, quase como num manifesto silencioso enviado para as gerações futuras. Parece apontar as fragilidades dos bens materiais frente ao talento divino do artista, e desafia o seu tempo a ultrapassar essas fronteiras. Duplicando seu olhar, ora para dentro e ora para fora da tela, o pintor se divide nos papéis da interlocução. Assim, também nos coloca no diálogo como interatores capazes de questionar não só o papel de cada personagem, como nosso próprio papel enquanto espectadores, num exercício especular.

A palavra especular pode ser, além de alusivo a espelho, definida como o ato de observar, meditar, pesquisar e indagar, e é nessa ordem que também racionalizamos teoricamente as causas da existência metafísica das coisas. Não à toa, Michel Foucault no livro ‘As palavras e as coisas’ (1981) fez um passeio filosófico sobre as relações que se constroem em torno da imagem de ‘Las Meninas’, analisando o lugar do sujeito na representação. Sua leitura crítica sobre a obra destaca fundamentalmente a importância do espelho no fundo da sala e no centro áureo da pintura, como o elemento que restitui o que falta a cada olhar das personagens em cena:

'Talvez essa generosidade do espelho seja simulada; talvez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderia aparecer – deveriam aparecer – o rosto anônimo do transeunte e o de Velázquez. Pois a função desse reflexo é atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra.’ (FOUCAULT, Michel. ‘Las Meninas’ in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes 1981. (p. 30)

O estudo de Foucault vai ao cerne do problema que gira em torno do sujeito que se autorretrata figurativamente. Sua relação ambígua com sua própria imagem frente ao seu papel social, sua identidade privada e sua conduta coletiva, seus motivos de adoração e desejos de transformação e perpetuação. Em outras palavras, o desejo de lançar mão da própria imagem e projetá-la para além de sua limitada existência física original acompanha a humanidade até hoje, e não são poucos os exemplos. A autorreflexão, autoafirmação, autodilaceração ou autossublimação caminham lado a lado ao espírito criativo. São buscas pela eternidade. Estão dentro dos artistas e de cada um de nós em maior e em menor grau ao longo da nossa existência.

domingo, 26 de abril de 2009

Las Meninas


'Las Meninas', de Diego Velazques, 1656.

Ver, ou melhor, rever ‘Las Meninas’ quase 20 anos depois da primeira vez foi uma experiência curiosa. Ainda no curso de Arquitetura e Urbanismo na UFPA, esta imagem do espanhol Diego Velazquez me foi apresentada pelo então titular da Disciplina História da Arte, Prof° Hélio Veríssimo (um gaúcho que foi um dos pioneiros da disciplina História da Arte no Pará) no fim da década de 1980. Pouco me lembro dos comentários do professor, exceto por alguns detalhes relativos às curiosidades sobre os retratados, sobre umas supostas mensagens simbólicas camufladas na riqueza de detalhes do aposento barroco, e de, talvez, ter desejado um dia poder ver de perto esta e outras imagens daquela aula. Hoje, meu olhar se vê mais uma vez convidado a entrar neste quadro enigmático, - novamente ciceroneado por outra gaúcha, Profª Mônica Zielinsky, - e relatar minhas impressões desse passeio visual reflexivo. Não poderia começar minha abordagem sem antes levantar o componente sentimental e memorialista que esta imagem provoca em mim, ontem e agora, pois é justamente daí que vem minha leitura mais espontânea: a relação do olhar ao longo do tempo.

Não sei se foi a vivência como fotógrafa que me impôs um leitura visual pautada prioritariamente nas questões da luz e do foco, mas ‘Las meninas’ tem nestes dois quesitos elementos estruturais que lhe garantem parte da força e do frescor que lhe constituem. Quase duzentos anos antes da invenção da fotografia, Velazquez constrói uma cena rica em contrastes de claro e escuro, e com uma profundidade de foco no campo visual que seria compatível com uma ínfima abertura de diafragma, o que lhe garantiria muita nitidez para a cena se estivesse usando uma câmera. A iluminação da cena a partir da disposição dos personagens e da tela, - que parece está em processo de produção com um pintor ainda a postos - invoca a primeira de uma série de estranhezas relativas ao assunto do quadro e a intenção do autor ao criá-lo. O que de fato estaria acontecendo na sala?

Sem entrar no mérito dos personagens e do papel que cada um representa no grupo -muitos outros já fizeram isso de forma brilhante, e proponho ler a obra com o mínimo possível de referências diretas -, atenho-me a ver o quadro com o que trago das reminiscências que já descrevi há pouco. É indiscutível reconhecer que se trata de uma imagem que remete imediatamente a um flagrante típico de um registro paparazzi. Furtivamente, Velazquez nos faz pensar sermos testemunhas de uma cena habitual do seu atelier durante sua convivência com a nobreza espanhola. Os olhares desconfiados e surpresos do pintor, da menina loura, da anã e do nobre ao fundo da sala nos denuncia como visitantes deslocados do contexto. Suas expressões nos questionam sobre o quanto de mágico e perverso existe na curiosidade humana pela invasão aos círculos privados, nas vidas alheias e nas altas esferas de convívio do poder. Não é preciso muito conhecimento histórico para logo intuir que se trata de um grupo real, reunido e rodeado pelos símbolos que lhe vem perpetuando o status de luxo e riqueza: quadros, jóias, serviçais e um pintor para eternizar ou fantasiar o que eles achavam ser sua condição divina.

Ao flagrar a cena e se perguntar quem poderia afinal estaria sendo pintado pelo pintor à esquerda (imaginando não saber que se trata do próprio Velazquez auto-retratado junto aos nobres) tenta-se recorrer ao título do quadro, em que as meninas são o tema principal. A iluminação da cena, no entanto, confunde o assunto, pois a personagem mais ricamente adornada encontra-se de costas para o pintor, iluminada à contraluz e aparentemente interessada em olhar para além dos limites do quadro. Será para nós? Examinando atentamente o ambiente, vê-se ao fundo da sala um grande espelho que reflete um casal de nobres vestidos e postados com um rigor de realeza, e eles sim, parecem inspirar a atenção e respeito dos demais. Daí é que a uma nova organização espacial pode se dar para a cena, uma vez que a luz lateral ilumina um tema novo para nosso olhar, mas não para as demandas dos pintores dos séculos passados, que eram basicamente mantidos pelas encomendas de retratos à óleo de reis e do clero, como forma de perpetuação de poder e deleite narcisista.


Acima, a identificação dos personagens retratados no quadro.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Duplos

Espelhos que duplicam planos, autorretratos que duplicam rostos e transparências que interpolam camadas. Eis ai alguns temas que sempre fascinam em qualquer época, em qualquer estilo e linguagem.
Brassäi foi um mestre da fotografia que não resistiu às incontáveis possibilidades de jogar com reflexos de pessoas e luzes fotografando espelhos. As banhistas e os boêmios parisienses entraram para a história das imagens do Séc.XX.


Acima, à esquerda, ‘Backstage at the Folies-Bergere’, de 1933 e ao lado ‘ Couple d'amoureux dans un petit café’, quartier Italie, ca. 1932, ambas de Brassäi.

E o que dizer dos ensaios de André Kertèsz que subverteram com estranheza onírica as formas do corpo feminino, tema tão explorado pelas mais diferentes linguagens ao longo do tempo?



Acima, a série ‘Distorsion de André Kertész, de 1933. Espelhos também são aliados para outro tema recorrente na história da Arte e da representação, os autorretratos.



Henri Cartier-Bresson, Autorretrato, França, 1932



Bresson se autorretrata ainda jovem com sua Leica e, em 1992 é flagrado ao se auto retratar em pastel pela companheira Martine Frank.